O Presidente de Angola, João Lourenço, inicia na terça-feira uma visita de Estado à Turquia, a convite do seu homólogo Recep Tayyip Erdogan, levando na pasta vários acordos, entre os quais a ligação aérea entre os dois países. Lembram-se do “Colégio Turco”? Da “troca” de curdos residentes em Angola por… arroz?
O Chefe de Estado, também presidente do MPLA e Titular do Poder Executivo lidera uma delegação que integra vários ministros e tem chegada à capital, Ancara, prevista para hoje à tarde, segundo uma nota dos serviços de imprensa do Presidente.
Na capital turca, João Lourenço vai encontrar-se com Erdogan na terça-feira à tarde, enquanto as delegações ministeriais recíprocas vão analisar questões essenciais da relação entre Angola e a Turquia.
Na sequência destas acções, vão ser assinados vários acordos no domínio dos transportes (ligação aérea entre os dois países), a cooperação militar, o comércio, economia e recursos minerais.
Vão também passar em revista aspectos consulares e diplomáticos, designadamente a eliminação de vistos em passaportes de serviço, diplomáticos e especiais.
A missão do Presidente angolana na Turquia fica também marcada pela realização de um fórum económico empresarial na quarta-feira, onde irão participar dezenas de homens de negócios dos dois países.
“Neste fórum, o estadista angolano vai dirigir-se ao empresariado turco, para sublinhar o potencial económico de Angola e as múltiplas iniciativas tendentes a melhorar progressivamente o ambiente de negócios”, acrescenta o comunicado.
O director regional da Turkish Airlines, Alp Yavuzenser, disse hoje à Rádio Nacional de Angola, que a companhia turca vai operar duas vezes por semana na rota Ancara-Luanda-Ancara, quando for concretizado o acordo de ligação aérea com vista a aumentar o volume de investimentos e as trocas comerciais entre os dois países.
Em 2017, as autoridades angolanos alegar que o encerramento do Colégio Esperança Internacional (COESPI) – também conhecido por Colégio Turco – se deveu à necessidade de “assegurar a paz e a segurança nacional”. Foi uma explicação que só lembraria ao Diabo. E foi mesmo isso que aconteceu. O Diabo lembrou-se e mandou encerrar.
“Havendo necessidade de se garantir o bem-estar e a segurança dos cidadãos num clima de paz e harmonia social, sem quaisquer divisionismos susceptíveis de atentar contra a unidade e integridade territorial, arduamente alcançadas com o sacrifício do Povo angolano”, disse o Presidente da República quando autorizou o encerramento do Colégio.
Repita-se, para que não restem dúvidas, que tudo isto se passou com o aval do então Presidente da República, José Eduardo dos Santos e, ainda, com a conivência da comunidade internacional e das instituições internas que, em teoria, deveriam zelar pela legalidade e pelo primado de que ninguém (nem mesmo, é claro, o Presidente da República) está acima da lei.
No caso, como não se estava a falar de uma democracia e de um Estado de Direito, mas apenas de uma ditadura maquilhada com ténues indícios de democracia, valeu mesmo tudo. Tudo mesmo.
Assim, com a cobertura despótica do mais alto magistrado do reino (falar de Nação é um atentado contra a verdade), o ministro do Interior, Ângelo da Veiga Tavares, não teve dúvidas – perante ordens superiores nenhum sipaio tem dúvidas – em dizer que lhe mandaram dizer, ou seja, que o encerramento do Colégio Esperança Internacional, no dia 7 de Fevereiro de 2017, foi uma “questão de Estado e de soberania”.
Visivelmente embaraçado por não saber o que estava a dizer, o ministro tentou explicar que a decisão do Governo teve a ver com questões graves que lesavam o Estado.
“A questão que fez com que o Governo tomasse a decisão de encerramento do colégio é de bastante gravidade. Não tem nada a ver com quaisquer pressões que o Governo angolano vem sofrendo de qualquer país, mas por questões de natureza factual que nós não vamos pormenorizar, porquanto existe outra estrutura que está também a dar tratamento a esta questão”, disse o ministro, tentando explicar o inexplicável e que se poderia resumir numa palavra: nepotismo.
O ministro Ângelo da Veiga Tavares, numa vã tentativa de tentar tapar o sol com uma peneira, veio decorar a aberrante e despótica decisão com as supostas garantias de que houve “lisura” no processo de encerramento, e que os pais e encarregados de educação podiam estar descansados que o Governo iria minimizar os estragos.
Recorde-se que o despacho do Ministério da Educação, datado de 7 de Fevereiro, assinado pelo ministro Pinda Simão, ordenava o encerramento e determinou a entrega de toda a documentação fundamental, como documentos legais da instituição, processos individuais dos alunos, contratos e cadastros do corpo docente e administrativo ao Gabinete Provincial de Educação de Luanda.
Claramente todos estes documentos vão desaparecer “em combate” pois, a fazer fé nas metodologias da ditadura do MPLA, há sempre uma patriótica queima de arquivos.
Mostrando que sabe ser muito forte com os fracos e muitíssimo fraco com os fortes, José Eduardo dos Santos limitou-se a ceder em toda a linha às “ordens superiores” do camarada Recep Tayyip Erdogan. A troco de quê? De arroz para encher as barrigas famintas dos angolanos, mas também a algo muito mais valioso que passa por certos paraísos fiscais.
Onde irá parar a documentação que comprova a ligação do Colégio a um antigo ministro das Finanças e a Manuel Vicente, através de uma fictícia alteração do pacto social, onde entraram sem um tostão?
Do ponto de vista do regime, até por se tratar da necessidade de “assegurar a paz e a segurança nacional”, esse acervo será incinerado. Esquecem os ideólogos desta e de outras teses conspirativas que há cópias de todo esse acervo do Colégio Turco espalhadas por diversas partes do mundo e, inclusive, nas mãos de jornalistas.
O despacho do ministro da Educação (ou seja, de sua majestade o rei José Eduardo dos Santos) garantia que os pais e encarregados de educação seriam informados de todo o processo. Trata-se, é claro, de uma treta formal que, na prática, quer dizer: ou se calam ou… vejam o que acontece a quem contesta as nossas ordens.
Mais uma vez o regime matava primeiro e interrogava depois, primeiro lavra a sentença e depois faz o julgamento, garantindo assim que, em Angola, até prova em contrário todos somos… culpados.
Ao estilo dos carrascos que cortam o pescoço ao suposto culpado e, depois (sempre depois) aparecem a pedir desculpa, também Ângelo da Veiga Tavares, reconheceu “alguma irregularidade” no encerramento do colégio e afastou “quaisquer pressões” do Presidente turco. Tudo não terá passado, afinal e segundo a tese de Eduardo dos Santos, de uma infeliz coincidência.
Folha 8 revelou em primeira-mão
No dia 13 de Outubro de 2016, o Folha 8 escreveu que o presidente da Turquia, Recep Tayip Erdogan, estava a estabelecer contactos com as autoridades angolanas tendo em vista a extradição dos cidadãos turcos em troca do fornecimento de diversos produtos, sobretudo alimentares, visando encontrar mais uns tantos suspeitos para o suposto golpe de Estado da noite de 15 para 16 de Julho.
Em termos lineares, a ideia de Erdrogam foi trocar comida por pessoas que, supostamente, tiveram a ver (nem que seja só em pensamento) com a tentativa de golpe de Estado. Ao que parece, basta ser turco e, neste caso, estar fora do país para ser culpado até prova (que nunca existirá) em contrário.
Continuemos a relembrar o que nós escrevemos nesse dia. O alvo era África, mais concretamente, Angola. Tanto quanto o Folha 8 apurou, o Presidente José Eduardo dos Santos não estava convencido da validade dos argumentos das autoridades turcas, desde logo porque os cidadãos turcos estavam em situação legal, integravam uma comunidade pacífica e socialmente integrada e constituíam um importante motor do desenvolvimento económico e social do país.
No entanto, existia uma corrente de falcões no seio de altos dignitários do regime que, por mera ambição financeira, tentava convencer José Eduardo dos Santos. Nesse sentido, jogava a argumentação das relações bilaterais, dos investimentos oficiais turcos, pouco se importando que essa troca de comida por pessoas ponha em perigo a vida de inocentes, incluindo mulheres e crianças, legalmente estabelecidos no nosso país.
Aliás, sendo a extradição solicitada no âmbito da acusação de participação, directa ou indirecta, na tentativa de golpe de Estado, sabia-se que essas pessoas (inclusive mulheres grávidas) seriam condenadas e que a pena de morte era um dos cenários mais credíveis.
Neste momento, escrevia o Folha 8, os turcos que vivem em Angola onde, repita-se, constituem uma valiosa e importante comunidade para o nosso país, vivem apavorados por temerem que as garras de Erdogan consigam convencer as autoridades angolanas de que são aquilo que não são: golpistas.
Grave é, igualmente, o facto de que vários dirigentes do MPLA se perfilaram para corroborar as teses turcas, visando apenas apoderar-se do património desses cidadãos que, se forem deportados, verão os seus bens, investimentos, negócios confiscados pelos canibais do regime.
“Os turcos são empresários e nunca fizeram política nem na Turquia nem Angola. Agora que lhes cai em cima a possibilidade de serem, como outros, bodes expiatórios dos nefastos e opacos desígnios de Erdogan, ainda acreditam que Angola não se perfilará ao lado dos piores de África, nomeadamente Sudão e Somália, únicos países que aceitaram essa negociata de trocar seres humanos inocentes por dinheiro e arroz”. Isto foi escrito em 13 de Outubro de 2016.
Perante este cataclismo que podia, a todo o momento, bater-lhes à porta, os turcos apelaram à União Europeia, Estados Unidos da América e União Africana para poderem estar solidários com a sua situação enquanto inocentes que, caso o arroz valha mais do que eles na balança do Governo angolano, terão como destino a morte.
Na altura o Folha 8 recordou que Recep Tayyip Erdogan foi “vítima” de uma tentativa de golpe militar feito por medida e à medida de Recep Tayyip Erdogan. Esta foi, aliás, a melhor maneira para Recep Tayyip Erdogan fazer ele próprio um golpe militar para permitir a Recep Tayyip Erdogan instituir a pena de morte, fazer todas as purgas que entender, ficar com todos e mais alguns poderes e, ainda por cima, garantir a solidariedade e o apoio da Europa, EUA e Rússia.
Em todo este macabro jogo geo-estratégico em que as pessoas foram (são) meras peças de um xadrez canibalesco, relembremos que o islâmico-conservador Recep Tayyip Erdogan afirmou ter provas do envolvimento da Rússia no tráfico de petróleo do grupo extremista Estado Islâmico na Síria. Ao que a Rússia diz ter provas do envolvimento de Recep Tayyip Erdogan no mesmo tráfico. O Presidente turco mandou igualmente os EUA e a União Europeia darem uma volta ao bilhar grande ao dizer para americanos e europeus se meterem nos seus assuntos, depois das críticas dos ocidentais sobre a repressão sobre as pessoas suspeitas de envolvimento no suposto golpe de Estado falhado.
A Turquia procura apresentar-se perante os países africanos como o seu grande porta-voz junto das instituições internacionais, além dos seus papéis económico e humanitário. Há mais de uma década que a Turquia tem negócios a sul do Saara, recorda o Le Monde. Entre o domínio chinês e a presença brasileira e russa, há ainda espaço para os turcos multiplicarem contactos, entre ajudas humanitárias e lucros próprios.
Depois de uma história que liga a Turquia a África há muitos séculos, a entrada na União Europeia, em 2008, levou o país a reorientar a sua política internacional. Com a liderança do ministro das Relações Exteriores da época, Ahmet Dutoglu, a rede turca de representações diplomáticas em África expandiu-se muito. De 12 embaixadores, passaram a ser 39. E hoje há também 32 embaixadas africanas na Turquia.
E a diplomacia é também, se assim se pode dizer, “aérea”: em 2008, a Turkish Airlines voava para apenas quatro destinos na África subsaariana. Hoje são 26 voos diferentes. E o objectivo é claro: destronar a Ethiopian Airlines, a maior companhia africana, e também a Air France-KLM.
Os novos mercados
Escrevia o Le Monde que, nos últimos anos, as guerras na Síria e no Iraque e o afastamento entre Turquia e Egipto, Rússia ou UE levaram o país a ter de se reposicionar em termos diplomáticos. Para isto, a ASKON (a federação turca dos empresários e dos industriais) desempenhou um papel-chave, avançando para África. Os investimentos turcos no continente eram de 500 milhões de dólares em 2008, mas hoje ultrapassam os 10 mil milhões – estando sobretudo na Etiópia, na África do Sul, no Sudão e na Nigéria.
O grande papel da Turquia em África aos olhos do mundo foi o seu trabalho humanitário na Somália. O país participou na missão da ONU em território somali em 1991 e dois anos depois foi um turco, Çevic Bir, que passou a liderar essa força internacional. Em 2011, a 19 de Agosto, Recep Tayyip Erdogan surpreendia o mundo ao visitar a Somália, onde a seca e a fome deixavam um rasto de devastação. Viajou com a mulher, a filha, quatro ministros e outros membros do seu gabinete. A visita teve uma carga simbólica muito elevada – Erdogan era o primeiro chefe de Estado não-africano a visitar o país em 20 anos.
Ankara abriu depois uma embaixada em Mogadíscio, abriu poços de água, construiu uma estrada que liga a capital somali ao aeroporto e ergueu um hospital com 200 camas, que é o maior do país. E foi uma empresa turca que venceu o contrato para reconstrução e manutenção do porto de Mogadíscio. Em termos diplomáticos, a Turquia mediu as conversações entre a Somália e a Somalilândia, em 2015.
O AKP (o partido no poder na Turquia) afirmava o papel do Islão como instrumento político na cena internacional. Através das escolas da confraria Gülen e da IHH (a fundação turca para ajuda humanitária) levam essa mensagem mais longe. Há mais de uma centena de estabelecimentos ligados a estas redes turcas na África subsaariana.
Num registo mais laico, a TIKA (a agência turca de desenvolvimento) leva numerosos programas a cabo no continente, onde tem vários escritórios (na Etiópia, no Sudão, no Senegal, na Somália, no Quénia e na Tunísia).
E como é que os países africanos vêem estes avanços turcos? Cada um terá a sua ideia. Mas o investigador turco Mehmet Özgan resumiu ao Le Monde o estado de espírito das nações de África em traços gerais: “Uma mistura de embaraço e de esperança”.